A digitalização das cadeias de suprimento

Startup britânica fecha rodada de investimento de Série A com US$ 20 milhões para solucionar ineficiências invisíveis aos produtores

Estamos o tempo todo falando sobre sustentabilidade no agro e não apenas no que acontece dentro das propriedades rurais, mas como já demonstramos antes de forma circular, uma vez que todos os recursos que aqui estão, aqui ficarão. Exatamente por isso o tema sustentabilidade e circularidade na produção de alimentos não pode ser pensada com uma peça única que consiga atingir todas as etapas do processo.

Quando analisamos o sistema como um todo, notamos que há uma série de pequenas ineficiências ao longo de toda a cadeia, que somadas causam um grande efeito. Sempre que pensamos, por exemplo, em emissões de carbono, o que nos vem em mente são os grandes processos emissores, mas há uma série de emissões invisíveis que não percebemos e que poderiam ser minimizadas ou até mesmo evitadas. Essas pegadas de carbono não são fáceis e nem simples de serem detectadas, mas ela precisam ser medidas e mitigadas.

Uma empresa britânica chamada Hectare tem como foco atuar sobre esses pequenos focos para causar um grande impacto na sustentabilidade e através de ações simples que facilitam o entendimento e a medição destas pegadas de carbono. A ideia é conectar pontos, como nos jogos de criança, para se criar a imagem real. É como tornar os pontos em algo visível e de forma sucessiva dentro da cadeia de suprimentos, o conhecido supply chain.

Obviamente que não é possível trabalhar em toda a cadeia, mas é possível negociar a produção dentro da própria localidade onde se encontra e com isso evitar o transporte a longas distância e assim diminuir uma pegada de carbono. Da mesma forma se houver uma rastreabilidade efetiva do campo até o processamento, várias emissões podem ser evitadas. E até mesmo uma simples digitalização de processos feitos em papel, contribuem muito para o aumento da sustentabilidade. Pode parecer pouco, mas com vários destes pontos conectados e otimizados, especialmente em tempo-real, cadeias inteiras podem se tornar mais eficientes ou como no jargão smartest way.
Foi com esse empreendimento, baseado em dois produtos, um chamado SellMyLivestock e outro Graindex, que a Hectare levantou seu primeiro investimento a partir de um crowdfunding na plataforma Seedrs. A empresa cresceu e os resultados positivos e interessantes nos ponto críticos da cadeia destes processos fizeram com que a startup partisse oficialmente para uma rodada de Series A, onde levantou nada menos do que US$ 20 milhões de dólares. O sucesso na captação do recurso se deve principalmente pela capacidade da empresa em conectar e com isso criar sustentabilidade a partir de todos os stakeholders. No caso específico, iniciando com agricultores e pecuaristas, mas também com os traders, fornecedores e revendedores, já que todos têm um papel crítico no sistema. Essa é uma tendência, como podemos ver nas operações de startups que recentemente descrevemos para África. Conectar parece ser a palavra de ordem e a nova tendência. Um sistema de produção digital, com IoT, robôs e ferramentas biotecnológicas não são suficientes para resolver todos os gargalos do processo. Enxergar o que está invisível usando a tecnologia digital para isso é o passo que deve ser dado nos próximos anos.

Basicamente, se considerarmos que a agricultura digital e de precisão resolveu problemas de grande magnitude na área de produção, é hora de atacar outras etapas que antes passavam desapercebidas. Nesse caso é necessário a gestão de inventários completos e um sistema de rastreabilidade de ponta a ponta, que permitam análises e a tomada de decisão, gerando soluções que sejam simples, acessíveis e de fácil e rápida implementação.

Talvez o que ninguém tivesse imaginado é que a espinha dorsal do sistema de produção de alimentos fosse a gestão de inventários, que se forem visto em tempo real, podem trazer melhoria na qualidade dos processos e na tomada de decisão de cada negócio. Para aqueles que frequentam ou frequentavam fazendas, sabemos que a gestão de informação é ainda algo muito precário na maior parte das propriedades. Aqueles que são um pouco mais organizados ainda usam computação, planilhas e alguns aplicativos, mas a grande maioria ou anota as informações ainda em papel e sem o devido cuidado. O que não sabem é que com isso estão perdendo uma considerável parcela do lucro por esses pontos invisíveis do processo.

O que a Hectare sugere como solução a partir desta gestão do inventário é que se possa pensar em coisas nunca antes pensadas. Imaginem a seguinte situação, um pecuarista abre o seu sistema e pede para que seja analisada a demanda de animais e o mercado de carne no varejo; a partir de então o sistema de apresenta estas informações indicando dentro da sua rede mais próxima qual seria o melhor caminho. É uma grande otimização de fatores, como preço, transporte, adequação a demanda e preços pagos mais interessantes por redução de custos e melhoria por redução na pegada de carbono, sem se falar nos ganhos com o bem-estar animal. O mesmo vale para um agricultor pensando na venda de sua produção de milho, soja, algodão ou qualquer outro produto. Imaginem ainda se isso é combinado com sistemas de alertas, pois uma vez que todos seu inventário está atualizado em tempo real, é possível que sistemas de análise por Inteligência Artificial (A.I.) possa lhe avisar do ótimo momento para fechar um negócio. A quantidade de ligações telefônicas que seriam evitadas, pilhas e mais pilhas de papel que deixariam as mesas dos escritórios, oscilações e vulnerabilidade de preços que deixariam de nos afetar, papelada para rastreabilidade de entregas que deixariam de existir, além de se evitar deslocamentos por melhorar a eficiência das negociações, tudo isso traria ganhos financeiros e de sustentabilidade.

Essa é uma forma totalmente disruptiva de se pensar no sistema de produção de alimentos.
Todos esses gargalos antes estavam encobertos e nem se pensava na sua existência e quanto mais na sua ineficiência e na oportunidade que isso poderia gerar em termos de renda.
O sistema oferecido pela Hectare é um SaaS [Software as a Service] que conecta atualmente mais de 130 mil empresas, fornecedores, agricultores e pecuaristas, tornando-a uma das maiores redes globais de negócios agrícolas. Com o recente investimento de Series A a ideia é a expansão do mercado.

O SellMyLivestock foi o primeiro lançado pela Hectare, ainda em 2014, abrindo a possibilidade dos pecuaristas venderem seus animais online. O sistema avançou e outros benefícios foram percebidos e construídos como ganhos de valor, tais como o bem-estar animal, a biossegurança e a procedência pela gestão dos documentos. Em 2022 a empresa permitiu que fossem feitas a implementação de otimizações no sistema, o que levou a uma economia de mais de 4 milhões de quilômetros em transporte de gado. Como resultado o sistema se transformou em uma trust com milhares de pecuristas.

O Graindex foi lançado em 2016, com a missão de conectar os agricultores britânicos e lhes oferecerem maior segurança e estabilidade nas negociações. Hoje a Graindex é o maior marketplace no Reino Unido. Novamente essa rede se transformou em um grande trust pelo nível de confiabilidade que conseguiu imprimir nos negócios.

A ideia agora é que esses sistemas possam ser mais acessíveis e se transformem em uma tecnologia que permita a inclusão e com isso mais pontos invisíveis da cadeia de produção possam ser identificados e sejam transformados e promotores de ganhos, levando a uma agricultura mais sustentável e socialmente mais justa.

Referências:

Mondin, M. (2023) África, o continente do AgFoodTech – Parte 1. StartAgro

Editado por

Mateus Mondin

Professor Doutor

Departamento de Genética

Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” – ESALQ

Universidade de São Paulo

Editor Chefe da StartAgro