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Barreira do uso da terra para a produção de alimentos é quebrada

Pela primeira vez em 50 mil anos a produção de alimentos supera o uso das terras agrícolas, graças a ciência e a tecnologia

Pela primeira vez na história da humanidade temos oficialmente uma redução nas áreas agricultáveis no mundo. Entenda-se por agricultáveis todas as áreas que realizam algum tipo de produção que inclui plantas e animais. Os dados podem ser observados e conferidos no Our World in Data [https://ourworldindata.org/], uma plataforma que na minha opinião oferece os dados menos enviesados da atualidade sobre nosso planeta e nossas intervenções sobre ele. Essa tem sido a minha principal fonte de informações quantitativas e análises sobre nosso sistema de produção agrícola.

Essa queda na área de produção no mundo implica em um grande sonho que a maior parte dos formadores de opinião têm, que é oficialmente a restauração do habitat selvagem sem detrimento ao crescimento populacional e a produção de alimentos para essa gente. O artigo de Hannah Ritchie, assistente executiva da Our World in Data atesta em números que pela primeira vez estamos produzindo mais alimentos do que áreas que utilizamos para essas práticas, o que em termos gerais quer dizer que as terras aráveis estão reduzindo em área e que estamos alimentando mais pessoas enquanto o ambiente natural está se recuperando.

É claro que não podemos assumir esses números de forma literal e que uma análise mais detalhada e regionalizada se faz necessária. Entretanto, se considerarmos que estamos a cerca de 50 mil anos remodelando nossa paisagem natural pela derrubada das florestas e outras modificações para produzirmos alimentos e que ainda nesse processo sacrificamos uma considerável fração da nossa biodiversidade; ter dados que nos indicam uma mudança de cenário nessa escala de tempo é realmente animador e promissor.

Para essa análise é necessária uma complexa estruturação de dados e sua conciliação, já que existem pelo menos três modelos para ser medir o quanto de terra utilizamos para a produção de alimentos, que inclui os animais. O sistema agrícola não é linear como muitos imaginal, mas se trata de um mosaico que muitas vezes se mistura com outros elementos da paisagem. Isso inclui aquelas áreas próximas aos centros urbanos ou mesmo áreas dentro destes que podem ser confundidas facilmente com outras finalidades. As análises apresentadas po Ritchie são resultadas das somatórias dos principais modelos, sendo eles o HYDE 3.2, o da UN Food and Agriculture Oganization (FAO) e o de Taylor and Rising. A observação mais importante é que, independentemente do modelo todos eles concordam que houve uma queda na área utilizada para a produção de alimentos. Isso é muito relevantes, pois cada um destes modelos utiliza-se de uma metodologia diferente e ver que eles coincidem é um excelente sinal de coerência sobre os resultados observados.

Concordo plenamente com as palavras de Ritchie no seu artigo de que não precisamos mais pensar na produção de alimentos como algo destrutivo, mas que os novos modelos e os ganhos em eficiência nos permitem abrir novos caminhos que passam naturalmente pela recuperação de nossas áreas naturais e potencialmente da vida selvagem também.

Esse ganho de eficiência na produção de alimentos sem dúvida nenhum é resultada de um investimento de aproximadamente 100 anos de pesquisas e desenvolvimento de tecnologias de forma intensiva. Isso não quer dizer que não houve erros. E sim foram muitos os erros cometidos, mas há que se pesar os aprendizados que foram sendo acumulados ao longo deste tempo para ganho de eficiência e redução dos impactos ambientais. O melhoramento genético de plantas teve grande contribuição nesse processo, pois foram desenvolvidas plantas mais produtivas e plantas mais resilientes que permitiram aumentos significativos na produtividade. Acompanhando o melhoramento genético, tivemos um impressionante desenvolvimento nas tecnologias para proteção dos cultivos. Começamos de uma forma muito agressiva, com o uso de moléculas eficientes, mas ao mesmo tempo muito persistentes ou nocivas. Por outro lado, nos últimos 30 anos vemos um avanço significativo na oferta de tecnologias biológicas que aos poucos vão mudando o cenário da produção de alimentos. Paralelamente, as tecnologias de maquinários, onde me atrevo a incluir as soluções digitais e de IoT [Internet das Coisas], permitiram ganhos de eficiência nunca antes vistos. Mesmo que alguns possam criticar, dizendo que isso ainda não é universal, a escala de adoção continua acelerada e trazendo ano a ano ganhos e benefícios para a saúde do homem e do ambiente. E nada disso seria possível sem as pesquisas científicas.

E esse é o ponto crítico do artigo, de que é necessário continuar os investimentos, tanto em pesquisa como em transferência de tecnologias através das startups, para garantimos que essa redução do uso da área agrícola seja contínuo, progressivo e sustentável. Sabemos que o desacoplamento do uso da terra com a produção e a produtividade é resultado de todo esse esforço científico. Ainda é importante ressaltar que

Como destaquei acima, ainda é preciso ter uma leitura regionalizada dos dados, pois existem regiões do mundo onde há uma franca expansão da área agrícola. Enquanto em outras há uma redução. Nas regiões onde se constata essa redução, por ironia são aquelas onde há uma menor concentração de biodiversidade e que ao mesmo tempo algumas atividades foram modificadas para estruturas indoor tal como a produção de aves e confinamento de animais, ainda que o termo indoor não seja o mais apropriado, mas serve para contextualizar uma produção em um espaço reduzido, com controles mais precisos da produção e uma oferta de alimentos que não se utiliza do espaço natural, como as pastagens, por exemplo. Ainda que seja questionável o uso da produção agrícola para alimentação destes rebanhos e aves, o que estamos querendo mostrar é que há uma mudança no uso do espaço e não estou me atrevendo a discutir a eficiência do modelo, que é um outro assunto. Por outro lado, as regiões de maior expansão agrícola são aquelas onde se concentra a maior biodiversidade e as maiores reservas de carbono do mundo. Consequentemente estamos falando de perda de um patrimônio biológico irrecuperável, se a escolha for manter esse modelo de expansão.

Portanto, estamos diante de um paradoxo, pois temos espaços sendo disponibilizados em regiões onde a biodiversidade já foi consumida, mas que agora há uma oferta de recuperação; enquanto as maiores áreas de expansão agrícola acontecem em regiões ricas em biodiversidade com o preço da degradação desse patrimônio natural. Então temos como desafio equilibrar essa balança, pois evidentemente seu aspecto é totalmente desajustado e desvantajoso, apesar dos indicativos tão promissores desse uso mais eficiente da terra.

De forma alguma o paradoxo tira os méritos dessa análise, que representa um marco na história da humanidade. O paradoxo se torna importante para pensarmos como políticas serão estabelecidas para que sejam garantidos os incrementos de produtividade agrícola e ao mesmo tempo tenhamos a continuidade da redução da área agrícola e de que forma protegeremos nossos recursos naturais de mais degradação.

Para mim a resposta ainda continua sendo o desenvolvimento científico e tecnológico, por uma perspectiva mais técnica e que obviamente e mais decisivamente será determinada pelos debates diplomáticos e políticos entre os países para a harmonização desta equação e a garantia de um futuro efetivamente mais sustentável e seguro.

Referência

Ritchie H. (2022) After millennia of agricultural expansion, the world has passed ‘peak agricultural land’. In: Our World in Data at https://ourworldindata.org/peak-agriculture-land [acessado em 01 de agosto de 2023].

Editado por

Mateus Mondin

Professor Doutor

Departamento de Genética

Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” – ESALQ

Universidade de São Paulo

Editor Chefe da StartAgro