Agtech / Banner-Home / Destaque / Food Tech / Tendências /


CARNE CULTIVADA E O FUTURO DA PRODUÇÃO DE ALIMENTOS

A StartAgro explica a tendência de alimentos cultivados em laboratório e conversa com especialistas para responder à pergunta: podemos confiar nesta tecnologia?

 

A startup Israelense Future Meat Technologies abriu a primeira unidade industrial de carne cultivada em laboratório do mundo, na cidade de Rehovot, neste ano de 2021. Em um processo biológico e livre de OGM’s (Organismos Geneticamente Modificados), a empresa afirma que pode produzir 500 quilos de carne por dia (com as mesmas propriedades nutricionais de um produto oriundo de abate) emitindo 80% menos gases de efeito estufa, utilizando 99% menos área de terra e 96% menos água.

A Future Meat pode produzir carne de aves, carne de vaca, porco e de ovelha com um rendimento 10 vezes maior que padrão atual. O processo de cultura da carne é feito a partir de células-tronco destes animais, provenientes do músculo esquelético ou de embriões. Estas células são adicionadas em um meio de cultura dentro de um biorreator, onde terão acesso a todos os nutrientes que precisam para crescer e se desenvolver. São, então, adicionados micro transportadores que estimulam estas células a se transformarem em músculos de diferentes cortes.

Instalações da Future Meat em Israel

Cadeia produtiva da Pecuária atual

Para entender a cadeia produtiva da pecuária, seus gargalos e suas oportunidades, conversamos com Hudson Carvalho Silveira, que é formado em Engenharia Química Industrial com MBA em Administração do Agronegócio pela Fundace-SP de Ribeirão Preto (SP) e conselheiro de Administração certificado pelo IBGC-SP. Hudson trabalhou mais de 25 anos no setor de indústria de alimentos, comércio exterior, varejo, e-commerce e logística, em empresas como Meatfinder-China, JBS-USA, Walmart Brasil, Unifrango-Integra e Fast&Food. Atualmente, trabalha também como consultor internacional em agronegócio pela Herefordshire Ltda. e é COO e Diretor Comercial da Greenrock Commodities Londres para América Latina e Portugal

Segundo Hudson Silveira, com o aumento da produtividade da bovinocultura especificamente, a área necessária para criação dos animais para abate vem caindo significativamente nos últimos 15 anos – sem usar qualquer processo não natural (como utilização de hormônios) na cria, recria ou engorda do rebanho. A produtividade tem crescido graças à seleção genética de raças com melhor ganho de peso, uso de inseminação artificial na reprodução e à melhora do manejo das pastagens, além do aumento da produção via confinamento, com uso de rações balanceadas compostas de cereais e subprodutos de outras atividades agrícolas (como soja esmagada, bagaço de laranja e restos da produção de cerveja), diminuindo o impacto ambiental da cadeia da pecuária.

A cadeia de produção do agro tem suas particularidades com relação aos impactos no meio ambiente que ela gerava e que gera agora. Algumas escolhas muito acertadas pela cadeia vêm dando frutos muito importantes hoje

Hudson Silveira

Hudson aponta os benefícios indiretos gerados pela cadeia da pecuária, quando tecnificada e voltada para maximização da produtividade. Um manejo com rebanhos menores e mais produtivos permite que grandes quantidades de água que seriam consumidas sejam poupadas e que se deixe de emitir grandes quantidades de gases de efeito-estufa. O estrume gerado pelo gado (que gera gases poluentes quando entra em fermentação anaeróbica) pode ser usado como combustível substituto de carvão e derivados de petróleo para produção de energia ou aquecimento. Subprodutos de outras culturas podem ser utilizados na alimentação de bovinos e de outros rebanhos pecuários. O sistema de integração lavoura, pecuária e floresta desenvolvido pela Embrapa, ajuda os produtores a otimizar esta cadeia produtiva e a gerar uma pegada de carbono menor. Existem várias ações que podem ser feitas na cadeia produtiva da pecuária para se minimizar seus impactos.

Se você se interessou pelo tema, assista o Start Trends pela plataforma Strix.One – onde apresentamos o tema Sustentabilidade – e participe ao vivo no dia 13 de outubro – quando falaremos sobre Tecnologia e Inovação e 10 de novembro – quando apresentaremos a Economia Circular no agronegócio.

 

Por que “carne cultivada em laboratório”?

Produtos chamados de “carne” que não tem origem a partir do abate de um animal são produzidos a partir de células animais cultivadas em laboratório (como faz a Future Meat) ou a base de plantas que simulem características da carne convencional. Segundo Hudson, “na essência, o que se está buscando é, primeiramente, simular a textura, sabor e suculência de um bife além de eliminar os custos e tempo de se produzir um bezerro, criar, engordar, abater e desossar para ter o mesmo bife. Por isso, cria-se a carne em uma indústria. Para se ter a mesma sensação de comer um bife, com ingredientes a base de plantas e, como ele está sendo obtido em uma fábrica e não pelas regras da natureza, se obtém este bife em horas ao invés de anos”.

Produtos à base de proteína vegetal feitos pela Future Farm

Segundo o estudo “Is in vitro meat the solution for the future? ” de 2016, existem diversos pontos positivos na adoção desta técnica para fabricação de carne. Há primeiramente, uma série de preocupações que tem feito o consumo de carne diminuir em certos setores da sociedade – como a preocupação com o impacto ambiental da produção e com o bem-estar animal – que podem ser minimizadas com a produção de “carne artificial”. Também existem setores da sociedade que não deixam de comer carne (seja por gostarem de comer carne, seja pelo valor nutricional), mas procuram alternativas que causem menos impacto ambiental.

Um dos objetivos desta produção em laboratório é diminuir consideravelmente o impacto da produção pecuária no mundo e oferecer um produto igual ou muito semelhante à carne tradicional. Inicialmente, os públicos alvos são vegetarianos e veganos, pessoas que consomem carne (mas tem preocupação com a poluição do sistema produtivos) e, à medida em que a propaganda atinge mais pessoas, que o produto se torna barato e as características sensoriais se tornam iguais ao produto original, atingir um público mais amplo e que não possua as restrições que os já citados.

Quanto à característica nutricional, segundo Hudson “teoricamente pode-se conseguir níveis de proteína ou outros nutrientes maiores que o da carne convencional. Já existem produtos com esta finalidade disponível para os clientes. Empresas como Impossible Foods, Beyond Meat e Meta Foods já possuem produtos sendo comercializados nos mercados pelo mundo”. Quanto ao aspecto sensorial do produto, Hudson explica que “os fabricantes continuam no processo de desenvolvimento, com tecnologias cada vez mais sofisticadas para entregar esta experiência de carne o mais real possível para os consumidores e acredito que possam chegar sim, muito próximos a isso. Recentemente, uma equipe de cientistas da Universidade de Osaka no Japão conseguiu, através do processo de impressão em 3D, produzir um bife de Wagyu. A raça de bovinos Wagyu, de origem japonesa é a carne mais cara do mundo devido a seu sabor, textura e produção. É uma carne extremamente entremeada de gordura, o que confere características peculiares. Os cientistas fizeram o bife usando células tronco de bovinos”.

Produtos à base de proteína vegetal produzidos pela Beyond Meat

Embora a produção de proteína possa parecer futurista, nós já utilizamos produtos provenientes de cultivo de material biológico em laboratório. A insulina humana, por exemplo, pode ser produzida através de bactérias com a Escherichia coli. Outra possibilidade é a criação de tecidos e órgãos humanos em laboratório para transplante. Esta constatação, entretanto, não isenta a carne de laboratório de ser alvo de dúvidas e desconfianças por parte dos consumidores.

O mesmo estudo “Is in vitro meat the solution for the future?” aponta algumas dessas desconfianças. Por um lado, consumidores e agentes da cadeia produtiva de proteína animal tem preocupações quanto aos traços sensoriais da carne de laboratório. Há desconfiança de que este tipo de carne não possua o mesmo sabor e que tenha uma textura diferente, inviabilizando certos preparos dos cortes e dificultando sua aceitação no mercado.

 

Regulamentação e segurança da Carne cultivada

Há, também, uma série de questões éticas que envolvem a fabricação de carne em laboratório, uma das principais é que o consumidor vê esse produto como “não-natural” e que, justamente por isso, pode trazer malefícios para a saúde humana. Este estudo argumenta que alguns consumidores tendem a ver os cientistas que desenvolvem estas tecnologias como “aprendizes de feiticeiro”. Para Hudson “algumas empresas dominam determinadas tecnologias para produzir insumos importantes na fabricação da carne cultivada ou sintética, desde leveduras, enzimas, extratos vegetais, processos biomoleculares, entre outros. Não sabemos até que ponto vamos conhecer bem o que estamos colocando no prato, ao final do dia. Portanto, a necessidade (ou não) de uma regulamentação específica terá de ser analisada por cientistas, autoridades e a sociedade civil organizada. Todos os lados devem opinar. Existe mais uma barreira que será a cultural, dos consumidores, para consumir um produto com estas características”.

Justamente por isso, o artigo “’Cultured Meat’: Lab-Grown Beef and Regulating the Future Meat Market” de 2018, insiste na necessidade de regulação destas tecnologias. Para a autora Jennifer Penn, a carne produzida por meios convencionais já possui uma cadeia de monitoramento (nacional e internacional) muito grande e eficaz para garantir a segurança do consumidor. Além considerar a carne convencional como segura, as agências de regulamentação cuidam para que toda a cadeia de produção, transporte e comercialização desses produtos entreguem um produto de qualidade para o consumidor (evitando, por exemplo, a venda de produtos estragados, sem valor nutricional adequado, de baixa qualidade, entre outros aspectos).

O coalho – usado na produção de queijos – é um produto que vem sendo amplamente produzido através de engenharia genética, com leveduras, fungos ou bactérias geneticamente modificadas. Segundo o artigo “’Cultured Meat’: Lab-Grown Beef and Regulating the Future Meat Market”, para o FDA (Food and Drug Administration, uma espécie de Anvisa estadunidense), o coalho é um aditivo alimentar e, por isso, são considerados iguais aos produtos existentes e que são considerados seguros. Além disso, o coalho é uma enzima que entra no processo produtivo e não é um produto final como é o caso da carne. Aí está o centro da discussão: como classificar a carne de laboratório e garantir parâmetros para sua qualidade?

“Qual o nome deve ser concedido a este produto semelhante a carne, que tem estruturas totalmente distintas da composição de um músculo animal (nome técnico para carne) de actina, miosina, colágeno, etc.? Pelo menos os de base vegetal são assim.  E os que usam células animais, poderão ser chamados de carne, como a obtida da forma tradicional?” opina Hudson. De fato, um produto tão novo e disruptivo precisa de um sistema de avaliação que também seja novo, já que sua produção é diametralmente diferente dos produtos com que a carne de laboratório concorreria. A questão da regulamentação começa pelo nome e passa por pontos sensíveis da produção, como o cuidado necessário na produção, a qualidade da proteína produzida, os ingredientes utilizados, entre outros.

Se o produto parte de uma base de origem animal, aí segue-se toda a parte de regulamentação hoje em vigor para a indústria de derivados de carne. Lembrando que os produtos necessitam de um registro para a venda no Brasil ou no exterior e para se obter o registro deve-se descrever o processo industrial, os ingredientes, embalagens, entre outros

Hudson Silveira

De todo modo, é fato que os avanços em direção ao barateamento de produtos alimentícios (ou sua produção) são sempre benvindos. Além do problema climático que estamos enfrentando, a segurança alimentar é outra urgência que devemos enfrentar enquanto sociedade. Para Hudson, as tecnologias atuais podem ajudar a resolver estes dois problemas de uma vez: produzir mais, melhor e com menos terras para alimentar as pessoas e para poupar recursos naturais. “A engenharia genética, as novas tecnologias de fabricação, estão aí para nos ajudar a melhorar nossos alimentos e também para fazer com que os alimentos cheguem aos menos favorecidos, já que está cada vez mais difícil que a carne tradicional chegue à mesa de todos, principalmente a estes que passam fome no mundo” afirma Hudson.