Fazendas de águas são digitalizadas para produção de peixes de alta tecnologia
Como a aquicultura de precisão e a biotecnologia estão revolucionando a produção de pescado sustentável no mundo
Sempre que se viaja pela costa brasileira e se olha para o horizonte, vemos aquela imensidão de água sem fim e passam mil coisas pela nossa imaginação, mas uma com certeza nunca acontece, de que ali há milhares e milhares de fazendas. Sim, as águas, sejam elas salgadas ou doces, são um dos maiores fornecedores de alimentos de toda a cadeia de produção. Portanto, não estamos pensando em água para a irrigação e sim como fonte para a produção de pescados e muitos outros produtos de alto valor nutritivo. Quando se fala em uso das águas para produção, muitas vezes lembramos daquela pesca predatório e criminosa, frequentemente estampada na imprensa mundial. Entretanto, existem modos de produção e exploração das águas de forma sustentável, ambientalmente e socialmente correta, respeitando-se todos os princípios de equilíbrio natural. Não é a toa que a ONU estabeleceu a ODS de número 14, como aquela de vida na água – conservação e uso sustentável dos oceanos, dos mares e dos recursos marinhos para o desenvolvimento sustentável.
A aquicultura, termo técnico para a produção de produtos com origem em águas, é a cadeia da produção de alimentos que mais cresce no mundo e seu valor de mercado ultrapassa os US$ 13,5 bilhões. Com isso, esse segmento tem atraído a atenção dos empreendedores e investidores. As startups com foco em geração de soluções tecnológicas para produção marinha arrecadaram mais de US$ 193 milhões de acordo com dados de 2016, ou seja, a sete anos atrás. É eminente a necessidade de atualização destes números para o setor, mas embora desatualizados, eles demonstram a potência desse mercado. O que se sabe é que no último ano várias startups receberam aportes significativos de investimentos para solucionar desafios que pairam no dia a dia da aquicultura.
Por exemplo, a startup Aquabyte completou sua Series A de investimentos com um total de US$ 10 milhões para expansão da sua operação de forma global e também para aumento de pessoal. A empresa oferece soluções de altíssima tecnologia, como uma câmera submersa que coleta dados sobre as condições dos peixes, como tamanho, peso, condições de saúde, entre outras e tudo fica integrado em uma plataforma que usa de sistemas de I.A. (inteligência artificial) para gerar informações para tomada de decisão precisa quanto a colheita do pescado. Com toda essa informação é possível melhorar a qualidade de vida dos pescado, trazendo melhores tratos aos animais e ao mesmo tempo reduzir custos e aumentar a margem de lucros.
Esse é apenas um dos casos de um setor que tem passado por um desenvolvimento tecnológico sem precedentes em sua história, e que carecia de melhorias. A inovação digital é a mais emblemática e atende não apenas a produção em águas marinhas, como também nas chamadas águas terrestres ou doces.
Estas tecnologias, que poderiam ser chamadas facilmente de Aquicultura de Precisão, como um paralelo a já consolidada Agricultura de Precisão, eram críticas para a transformação do setor do pescado, pois havia a necessidade de se entender em tempo real como os peixes crescem, que tipo de fator poderia estar afetando o seu desenvolvimento, como estão evoluindo em termos de saúde, como estão respondendo a alimentação ofertada e saber quanto de biomassa estão produzindo. O desenvolvimento da visão computacional foi um passo decisivo para o avanço da Aquicultura de Precisão, uma vez que os peixes não estão a vista e o uso de hardwares e IoT são indispensáveis para que possam ser observados. Consequentemente, essa coleta de dados já veio integrada com o aprendizado de máquinas e o uso da I.A.. A precisão destes sensores e câmeras utilizadas nas fazendas aquáticas e disponibilizadas por startups como a Aquabyte permitem até a contagem de quantos piolhos do mar um indivíduo tem e quanto de fome o animal está sentindo. Com base nessas informações é possível saber o que precisa ser feito para que o peixe possa se manter saudável.
Apesar de toda a tecnologia, esse não é o fim da linha, é necessário que essas inovações avancem e seja amplamente adotadas e utilizadas pelo produtores de todos os tipos de produtos alimentícios vindo das águas. Para isso um esforço coletivo entre fazendas, governos, universidades, institutos de pesquisas e fornecedores de tecnologia, é necessário para que as tecnologias cheguem e sejam utilizadas pelo usuário final e não apenas no mar, pois o uso de águas doce para criação é tão desafiador quanto.
A aquicultura em água doce ou em terras, se baseia em um sistema denominado de RAS abreviação paraRecirculating Aquaculture Systems que em tradução livre ficaria Sistema de Recirculação Aquícola. Nesse tipo de sistema de produção é essencial que o ambiente seja estável e perfeito para vida em uma rotina de 24/7, o que é garantido com uso de muito equipamentos e é dependente de muitos insumos que a tecnologia poderia tornar evitáveis como os produtos químicos e os antibióticos. Manter um sistema RAS funcionando perfeitamente é uma operação altamente complexa e o uso de tecnologia facilitaria demasiadamente o trabalho e poderia mitigar muitos erros humanos decorrentes do desgaste físico e psicológico.
Uma vantagem natural da produção em RAS é a possibilidade de rastreamento dos peixes de ponta a ponta na cadeia produtiva e com adoção da Aquicultura de Precisão, ainda seria possível produzir com mais qualidade, tonando o produto final mais saudável e natural. Outra vantagem do uso de tecnologia na produção em RAS, seria a redução de importações de produtos de pescado vindo de longas distância, o que mitigaria muito das emissões de carbono nessa cadeia.
Assim como a Agricultura de Precisão é altamente dependente da oferta de materiais genéticos melhorados, a Aquicultura de Precisão precisa estar alinhada com a biotecnologia e o melhoramento de pescados. Nessa linha tecnológica startups como a Benchmark tem oferecido novas matrizes genéticas. A empresa se baseia na aplicação de métodos de melhoramento genético bastante sofisticados, como a seleção genômica por genotipagem de alta densidade, que gera marcadores genéticos para QTLs (Quantitative Trait Loci ou Locus de Característica Quantitativa) onde se encontram muitos genes de importância e consequentemente a seleção dos melhores materiais se baseia no uso destes marcadores genéticos. Essa metodologia é aplica rotineiramente no desenvolvimento de variedades de salmões que sejam resistentes a patógenos, mas também se pensa na eficiência de reprodução e nas taxas de crescimento.
Em outra frente de desenvolvimento está a AquaBounty que teve seu salmão geneticamente modificado aprovado para consumo humano pelo FDA (Food and Drug Administration) dos Estados Unidos, após 30 anos de pesquisas. Esse é um dos primeiros transgênicos desta natureza autorizado para produção. A tecnologia consiste em alterar um dos genes dessa espécie de peixe que passa a lhe conferir uma maior sobrevivência nos primeiros estágios de vida, quando tem grande vulnerabilidade. Com isso, o que se consegue é uma maior quantidades de animais, viabilizando a produção em RAS, impactando diretamente sobre a quantidade de salmão que é retirado direto na natureza e assim melhorando a preservação da espécie. O uso de uma variedade de salmão geneticamente modificada resultou no aprimoramento das práticas de criação e minimizaram os impactos ambientais.
O próximo passo ainda está para ser dado no que diz respeito a aquicultura, uma vez que a União Européia investiu mais de € 6 milhões (seis milhões de euros) em pesquisas nos últimos 6 anos, para valorização das águas-vivas com diferentes aplicações que envolvem até seu consumo como alimento. Aparentemente o investimento no estudo das águas-vivas parece já estar produzindo resultado, com o sucesso da startup Jellagen, que captou £ 8,7 milhões [8,7 milhões de libras esterlinas] em sua rodada Series A para acelerar o desenvolvimento do colágeno tipo 0 que promete revolucionar a medicina regenerativa.
Referência:
ONU – Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 14 Vida na água [https://brasil.un.org/pt-br/sdgs/14]
Editado por
Mateus Mondin
Professor Doutor
Departamento de Genética
Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” – ESALQ
Universidade de São Paulo
Editor Chefe da StartAgro