O fim das cadeias de produção e consumo, chegou a economia circular
O final de 2021 foi marcado por fortes movimentos sobre questões climáticas e de sustentabilidade em todas as suas vertentes. O ápice desse debate ocorreu durante a COP26 em Glasgow na Escócia. É explícito que estamos vivendo um momento muito significativo no mundo. Até recentemente os assuntos, sustentabilidade, mudanças climáticas, economia circular, ESG (Environmental, Social & Governance) e SDGs (Sustainable Development Goals) estavam restritos à especialistas de diversas áreas do conhecimento. Porém, o que se viu nesse ano de 2021, foram os temas alcançando de forma ampla a sociedade e envolvendo a todos de forma efetiva no debate e nos seus impactos sobre a nossa existência na terra.
Durante o evento Start Trends – Economia Circular, Lúcio Vicente, diretor de sustentabilidade do Grupo Carrefour, apresentou como as grandes empresas estão se conectando às questões científicas e estão mais preocupadas com os impactos que elas causam no sistema. Isso implica em ter claro nos planos estratégicos, que os métodos tradicionais de produção de alimentos é uma ameaça e que são necessárias ações imediatas que possam diminuir significativamente os impactos da atividade, sem que seja comprometida a segurança alimentar.
Por outro lado, a corresponsabilidade é a chave para o desenvolvimento de modelos sustentáveis de ponta a ponta. Os consumidores têm um papel central nisso, uma vez que todos somos micropatrocinadores do sistema de produção. Toda vez que um produto é comprado, o consumidor está endossando a história por trás daquele produto. Portanto, é fundamental inserir o consumidor como corresponsável do sistema de produção.
Essa inserção pode ocorrer de diversas formas, sendo uma delas apresentar a empresa como protagonista da ação sustentável. Um exemplo desse tipo de iniciativa é o Act for Food do Grupo Carrefour. O programa de sustentabilidade do grupo se apoia em quatro pilares. O primeiro focado em produtos de qualidade, com garantias de que são saudáveis e bons para o planeta. O segundo são preços acessíveis. O terceiro é a construção de omnicanal e serviços que aproximam o cliente da empresa, permitindo que esse faça aquisições de produtos quando quiser e de onde estiver. O quarto é a educação e a confiança, que tem como meta a fidelização dos clientes, por esses terem transparência a respeito da cadeia completa do produto que está adquirindo.
Essa não é uma tarefa simples, já que busca uma mudança de hábito dos consumidores. Porém, é possível perceber que aos poucos uma nova cultura está sendo criada, com clientes buscando mais informações, entendendo como o fornecedor se insere no sistema de sustentabilidade e consequentemente tomando a decisão de compra com base em seus valores sobre o tema. Certamente, esse novo padrão de comportamento, quando atingindo uma grandeza de escala significativa, fará com que toda a cadeia de produção se modifique.
Para garantir a adesão do cliente a esse movimento sustentável e a uma mudança de hábito de consumo, as grandes empresas precisam ter projetos de ESG (ou seu acrônimo em português ASG – Ambiental, Social e Governança) bem estabelecidos e fundamentados. No Grupo Carrefour, a frente ambiental apresenta seu compromisso com o combate ao desmatamento, ao bem-estar animal, a inclusão de produtos regionais que valorizem a biodiversidade e o controle de emissões de gases de efeito estufa. Na frente social, as ações passam pelo resgate de animais silvestres em situações de risco, pelo combate a desigualdade, até a garantia dos direitos humanos. Na governança há comitês temáticos para a sistematização dos processos, que garantam o total engajamento dos fornecedores através de diretrizes éticas e de compliance.
Na prática tudo isso deve ser transformado em ações efetivas. O desperdício de alimentos é um caso clássico. Quando o consumidor tem um hábito altamente seletivo daquilo que está comprando, o impacto na sustentabilidade é altíssimo. Um volume incrível de alimentos é desperdiçado pela presença de imperfeições que não são aceitas pelos consumidores. A solução é educar esse cliente para que ele consuma todo o tipo de produto sem preconceito. Outra solução é a doação de alimentos ou ainda a transformação daquilo que não pode ser doado, por exemplo, a produção de sucos concentrados. Ainda como parte da solução tem a produção de adubos orgânicos por compostagem que a seguir é vendido em seções de jardinagem. A inovação tecnológica entra nesse processo com a adoção de blockchain fazendo toda a rastreabilidade ao longo da cadeia produtiva e na logística reversa, quando o cliente é remunerado por voltar suas embalagens fechando alguns dos ciclos e fomentando a economia circular. Quando o consumidor tem ciência de que está sendo educado e de que a empresa tem compromisso com a sustentabilidade, há um sensível engajamento e sensibilização com o problema. Há uma autorreflexão da sua responsabilidade com esse impacto ambiental e social.
Essa é parte que contempla os grandes varejistas, que atendem o cliente final do sistema de produção. Além deles, o setor de processamento industrial também está sintonizado com as questões de sustentabilidade e ao que tange a economia circular. Dentro destes, o sucroenergético tem uma cada cadeias mais adiantadas em termos de circularidade e sustentabilidade. Ana Cláudia de Araújo Lima, gerente executiva de sustentabilidade e meio-Ambiente da Tereos, descatou em sua apresentação que 99% dos resíduos são utilizados dentro da própria agroindústria sucroenergética. Destaca-se que da produção de energia elétrica produzida pela queima do bagaço da cana-de-açúcar, 70% são distribuídos dentro da rede de consumo e apenas 30% é utilizada na planta industrial. A produção de energia elétrica nessa operação e sua distribuição para a sociedade, ainda não caiu na percepção social, apesar dos benefícios que ela traz. Outro resíduo importante é a vinhaça, um composto rico em micronutrientes, que retorna 100% para o canavial. O uso e a valorização deste resíduo têm um significativo impacto na redução de emissões de carbono no sistema de produção de fertilizantes, uma vez que não se necessita de importações para dentro do sistema destes nutrientes. É notável destacar também a questão da recirculação de água no sistema industrial reduzindo sensivelmente sua demanda e que a seguir é utilizada na fertirrigação. A própria composição da cana-de-açúcar é majoritariamente água. Essa água extraída pela planta é inserida no sistema e faz parte da composição da vinhaça, retornando para os campos produtivos. Esse sistema tem um balanço muito interessante do ponto de vista de sustentabilidade e tende a ficar ainda mais eficiente com a aplicação da vinhaça de forma localizada. Esses exemplos demonstram claramente como o sistema é circular por natureza.
Entretanto, o setor sucroenergético ainda busca um saldo positivo em termos de emissão de carbono, outros gases, resíduos e uso eficiente da água. A levedura resultante do processo de fermentação tem sido utilizada como complemento na alimentação animal, principalmente em sistemas de confinamento. Dentro destes confinamentos está sendo implementado a captação de biometano, que juntamente com aquele vindo da vinhaça, serão utilizados para abastecer a frota de caminhões e implementos agrícolas, reduzindo consideravelmente o uso de combustíveis fósseis e diminuindo a importação de insumos para dentro do sistema agroindustrial. O setor sucroenergético com isso gera um alto valor em CBIOs (Créditos de Descarbonização) pelos inúmeros ciclos que são possíveis de serem fechados dentro do seu processo de produção.
Para Saville Alves, co-fundadora da SOLOS, existe uma dor real hoje, que acontece fora das empresas produtoras ou processadoras. A necessidade de conectar o consumidor final com a economia circular de forma efetiva. As grandes empresas de fato estão engajadas e preocupadas com as questões de sustentabilidade ambiental. Por outro lado, quando esse produto chega na mão do consumidor final, a questão das embalagens torna-se um grande desafio. É necessário a criação de um sistema que estimule esse consumidor a trazer as suas embalagens de volta e estas entrarem novamente no sistema. Saville destaca que nesse processo de logística reversa há protagonistas ocultos que precisam ser vistos, ouvidos e valorizados. O pós-consumo no Brasil, por exemplo, passa pelas mãos de catadores, cooperativas e associações, que representam 90% da operação de logística reversa. Enquanto nas grandes empresas há uma discussão sobre o desenvolvimento e a aplicação de tecnologias inovadoras, esses agentes ainda não possuem ferramentas simples de trabalho que permitam a implantação de um sistema eficiente. O passo crítico nessa integração é plugar as grandes empresas com essa mão de obra criando a sinergia necessária para que haja paridade dentro do processo e ambos os lados ganhem com isso. O impacto imediato é a redução da desigualdade social e um avanço na sustentabilidade social. A distribuição de renda nessa conexão entre as pessoas em condição de vulnerabilidade e grandes players do mercado é o grande elo entre as partes. As empresas precisam desenvolver ações e métricas que permitam a comprovação de seu compromisso com essas ações de logística reversa, fazendo com que esses projetos se transformem em crédito de diferentes formas, inclusive de capital social.
Outro ponto crítico é o de quantas pessoas estão sendo conscientizadas hoje, de forma clara, leve e descomplicadas a respeito da economia circular. Por ter sido um tema restrito aos especialistas, a forma de comunicação com o público geral pode estar equivocada, dificultando uma compreensão dos reais significados e impactos da economia circular. O engajamento é fundamental para se completar a circularidade do sistema e a comunicação correta é parte deste sistema. Além disso, é necessário um trabalho educacional desde a base da formação escolar.
No Start Trends – Economia Circular, ficou claro que o debate deve ser horizontal e que não há espaço para uma discussão polarizada. A solução não está nas mãos de um ou de outro e não há um responsável maior do que nós mesmos. Quando se senta à mesa, grandes empresas, startups e sociedade, fica claro que há um perfeito alinhamento sobre os caminhos a serem seguidos. Isso não significa sem desafios e não quer dizer que o que está sendo feito já atingiu o estado de perfeição. Entretanto, são indicativos de que há iniciativas caminhando na direção correta e que precisamos intensificar e acelerar a escalada destes projetos. Ninguém dentro do sistema de produção quer produzir coisas ruins ou gerar impactos negativos, uma vez que quem produz também é consumidor.
É necessário, no entanto, voltar a uma questão; de que o desperdício de alimentos é um dos grandes problemas para o fechamento da circularidade. O desperdício de alimentos é um dos grandes causadores de desigualdade social e este problema ocorre na ponta da cadeia, dentro da casa dos consumidores. A circularidade depende da corresponsabilidade de quem mora e consume nas cidades. O velho jargão jogar fora, não existe em essência, pois tudo fica aqui, na terra; a questão é como utilizaremos esses recursos para que eles não causem impactos negativos.
O sistema de produção e consumo não são independentes e lineares, ao contrário, o sistema é circular como tudo na natureza.
Mateus Mondin
Professor Doutor
Departamento de Genética
Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” – ESALQ
Universidade de São Paulo
Editor Chefe da StartAgro