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O que o documentário “A Inventora” ensina sobre a cultura de inovação do Vale do Silício

Principal polo de inovação do mundo, o Vale do Silício é o endereço de muitas das empresas mais criativas e influentes em atividade. É um destino almejado por qualquer empreendedor, mas sua cultura de sucesso a qualquer preço esconde comportamentos potencialmente perigosos. É o que mostra o documentário “A Inventora – À Procura de Sangue no Vale do Silício”, exibido pela HBO e disponível tanto em reprises pela TV à cabo quanto no serviço de streaming da emissora.

Dirigido por Alex Gibney, responsável por documentários sobre Steve Jobs (1955-2011) e o fenômeno da cientologia, entre outros, o filme acompanha a trajetória de Elizabeth Holmes, jovem empreendedora que largou a Universidade de Stanford para fundar a startup Theranos quando tinha apenas 19 anos. Sua missão era oferecer mais de 200 exames a partir de uma gota de sangue tirada de um dedo. Tudo seria feito em uma pequena máquina, apelidada de Edison, em homenagem a Thomas Edison (1847-1931), presente em farmácias e a preços muito inferiores aos praticados pelas grandes corporações americanas.

A empresa chegou a ser avaliada em quase US$ 10 bilhões e recebeu centenas de milhões de dólares de investidores importantes, incluindo Rupert Murdoch e Betsy DeVos, além do apoio de outros líderes como Bill Clinton, Henry Kissinger e George Schultz, e de um acordo com a rede de farmácias Walgreens. Mas tudo não passava de uma fraude. Holmes e sua equipe estavam muito distantes de conseguir os resultados alardeados, mantinham todas as pesquisas em segredo e, em determinado momento, começaram a mentir para manter a imagem da Theranos.

Dois funcionários do baixo escalão acabaram denunciando tudo, e John Carreyrou, repórter do The Wall Street Journal, publicou a primeira reportagem questionando as práticas e alegações da Theranos. Foi o início do fim, e hoje Elizabeth Holmes e o COO Sunny Balwani aguardam o julgamento, cujo início está marcado para junho de 2020. Eles podem pegar até 20 anos de prisão por conspiração e fraude.

O documentário não julga o comportamento de Holmes. Um dos entrevistados, o professor de psicologia Dan Airely, diz que olhar apenas para a mentira é perder a essência da discussão. Por isso, é importante olhar para a trajetória da empreendedora – e tirar algumas lições sobre o ecossistema do Vale do Silício e a cultura de inovação como um todo. 

A principal delas diz respeito à estratégia popular no Vale do Silício – e em outros ambientes de inovação no mundo – de “fingir até conseguir”. Muitas empresas estabelecem objetivos incrivelmente ambiciosos sem saber se de fato conseguirão atingi-los. Em ecossistemas competitivos, essa ambição é praticamente um pré-requisito para se destacar. Por isso, é comum ver tantas startups desaparecerem em pouco tempo. Em casos mais extremos, os empreendedores levam essa ambição às últimas consequências, uma atitude perigosa, como o documentário mostra.

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Fica claro também como funciona a cabeça dos investidores, especialmente aqueles que colocam recursos em empresas em estágio inicial. Para eles, o importante é confiar em seus instintos, deixando de lado dados e estatísticas sobre o produto em questão. É aí que entram as figuras carismáticas, como a própria Elizabeth Holmes. Ela conseguiu captar a atenção de pessoas muito importantes, que pouco entendiam de medicina, mas se sentiram atraídos pelo foco da empreendedora. Dan Airely fala sobre como a empatia e a história pessoal são determinantes. Holmes conseguiu arrecadar centenas de milhões, assim como uma reportagem de capa na revista “Fortune”, além de participações em eventos, usando nada mais que a sua trajetória, já que qualquer detalhe sobre o funcionamento de sua solução era considerado um segredo de estado.

Essa imagem do líder carismático também é problemática. Entre as inspirações de Holmes está Steve Jobs, o mestre Yoda, personagem da saga “Star Wars”, e Thomas Edison, o primeiro inventor celebridade cuja maior invenção foi sua própria figura. Ele inclusive adotou a política de “fingir até conseguir” quando anunciou que havia resolvido o problema das lâmpadas incandescentes, uma mentira que sustentou até conseguir, de fato, encontrar uma maneira de impedir que os filamentos continuassem derretendo. As pessoas são capazes de seguir esses líderes sem questionar suas atitudes. Nesses ambientes, desconfiar da probabilidade de sucesso de determinada empreitada deixa de ser uma visão realista para se tornar uma atitude de alguém que não faz parte da cultura da empresa. 

“A Inventora” está disponível na plataforma HBO Go. É possível ainda acompanhar o cronograma de reprises na televisão por meio deste link.